Entre a dor e a esperança: fé madura no “dia mau”
Uma reflexão sobre como Decepcionado com Deus de Philip Yancey (Editora Vida, 2004) ilumina a fé que persiste quando as respostas faltam e o sofrimento parece vencer.

Escrevo a partir do lugar onde fé e realidade se atritam como duas placas tectônicas. A Bíblia não esconde esse tremor. A igreja em Éfeso é lembrada por Cristo: "Conheço as tuas obras, o teu labor e a tua perseverança… e não te deixaste esmorecer por causa do meu nome" (Apocalipse 2.2-3). Paulo, na mesma cidade, pede algo sem triunfalismo: vistam a armadura para resistirem no dia mau e, tendo feito tudo, permaneçam firmes (Efésios 6.13). O evangelho não promete um terreno plano. Promete presença e firmeza quando o chão racha.
Philip Yancey nomeou com lucidez o que muitos de nós sentimos quando o céu parece de chumbo. Em Decepcionado com Deus. Três perguntas que ninguém ousa fazer a Deus, edição em português, a partir do original Disappointment with God. Three Questions No One Asks Aloud, publicado por Zondervan em 1988 e relançado em várias edições, ele organiza nossa perplexidade em três interrogações: Deus é injusto, Deus está em silêncio, Deus está escondido. Não são provocações cínicas. São o clamor de quem leva Deus a sério e recusa atalhos intelectuais. Yancey nos conduz de volta ao texto bíblico exatamente onde ele é menos domesticado e mais verdadeiro, quando desmonta a suposição de uma contabilidade automática entre mérito e recompensa, quando revela a pedagogia do silêncio e quando explica por que Deus se revela o suficiente para ser encontrado, mas não a ponto de coagir a liberdade.
Jó é o contraponto mais desconcertante a toda teologia do pagamento instantâneo. Íntegro, generoso, temente, ele perde bens, filhos e saúde. Seus amigos defendem uma equação frágil: se sofre, é porque pecou. Deus não oferece a Jó uma planilha causal. Convida-o a contemplar a criação, a vastidão que o excede. Jó não recebe a resposta que imaginava, recebe Deus, e isso muda tudo. A confiança, ali, deixa de repousar na previsibilidade das circunstâncias e se ancora no caráter do Senhor. O silêncio também faz parte da gramática da fé. "Até quando?" é frase bíblica. Os salmistas a pronunciam com reverência e coragem. Jesus atravessa o Getsêmani na madrugada em que não houve alívio e, na cruz, ora o Salmo 22. "Meu Deus, meu Deus, por que me desamparaste?" O Pai não o poupou da cruz. Sustentou-o através dela. Paulo pediu que o espinho fosse removido. Recebeu graça suficiente. A maturidade desloca a régua. Aprende a medir o amor de Deus não por coincidência entre nossa vontade e o desfecho imediato, mas pelo Filho que nos foi dado.
A vida cristã caminha entre promessas e lamentos, e nenhuma dessas duas palavras deveria soar estranha no culto ou na casa. Porque o deserto não é metáfora retórica. É endereço. Há histórias reais que nos lembram disso com dor concreta. Uma mãe atravessou a madrugada diante da porta do necrotério depois que o filho de dois anos, Ryan, não resistiu a uma crise respiratória durante uma simples inalação. Pediu um milagre, telefonou em pranto, clamou. O céu não se curvou à pressão do relógio. A resposta não veio no molde que ela implorava. Vem, porém, aquele fio de consolo que a Escritura descreve como presença que chora conosco. "O Senhor está perto dos que têm o coração quebrantado" (Salmo 34.18). Em outra cidade, um missionário vendeu tudo, atravessou fronteiras, subiu montanhas com ceia e evangelho na garupa, e não voltou. Encontraram seu corpo sem sangue, as pernas e o braço quebrados, um rastro longo no chão. É inevitável perguntar por que o socorro não chegou. Há momentos em que só nos resta repetir com Habacuque que, ainda que a figueira não floresça, o justo viverá pela fé, e a fé, nesses dias, é menos sensação e mais decisão.
Há o casal que esperou, planejou a casa, organizou a vida, pintou o quarto e, entre ultrassons e pequenas alegrias, ouviu do médico o diagnóstico que nenhuma mãe quer ouvir. Há o pai que beijou o filho especial no berço e, ao olhar pela janela, viu o vizinho levar a criança saudável para a escola. Entre o vizinho e o berço nasceu uma pergunta antiga como o mundo. Yancey observa que milagre não reprograma afetos por si só. Israel viu o mar se abrir, comeu maná, caminhou sob coluna de fogo, ainda assim fabricou um bezerro de ouro. Espetáculo sustenta por instantes. Transformação pede relação, memória e obediência no ordinário. É por isso que Deus espalha no caminho memorial e mesa. A Páscoa para que ninguém esqueça quem libertou. As doze pedras do Jordão para que as crianças perguntem o que significam aquelas pedras e recebam a história como herança. A ceia do Senhor no Novo Testamento para que a igreja se lembre de Jesus com o pão na mão e a promessa nos lábios.
Existem noites em que a notícia chega no corpo, não no ouvido. Uma mancha no espelho do banheiro. Uma biópsia que retorna com a palavra que não queríamos pronunciar. O consultório parece encolher. O caminho de volta para casa fica mudo. Nessas horas, os salmos de lamento foram escritos para nos emprestar palavras. "Até quando?" não é rebelião. É fé que se recusa a fingir. O Espírito ajuda nossa fraqueza e intercede com gemidos inexprimíveis quando nosso vocabulário falha (Romanos 8.26-27). Há viúvas que acordam de madrugada e estendem a mão para o lado da cama por reflexo. Há solitários que experimentam o vexame de piadas fáceis e descobrem na pele que a solidão é mais do que um sentimento, é uma dor. Há líderes que sofrem difamação, chantagem, injustiça, e precisam decidir se vão se esconder ou permanecer na luz, confiando que Deus fará justiça sem que precisem trocar a verdade por autopreservação. A Bíblia não oferece uma estética de pose. Oferece linguagem para chorar e compromisso para ficar de pé.
No pano de fundo, a cena grande continua a mesma. Sansão colhe consequências, mas descobre que o cabelo volta a crescer. Mefibosete chega aleijado à sala do trono e recebe lugar à mesa do rei. Moisés morre antes de pisar em Canaã, mas conversa com Cristo na Transfiguração. Jó enterra seus mortos e, embora restaurado, não recebe uma vida sem cicatrizes, recebe um futuro habitado por Deus. Essas narrativas não romantizam o sofrimento. Colocam o sofrimento no regime da esperança, onde o último capítulo não pertence à dor. A pedagogia divina não infantiliza com provas diárias de força. Ela forma com presença e chama para escolhas livres. Há luz suficiente para quem deseja ver e sombra suficiente para preservar a liberdade. Deus quer filhos, não marionetes.
No cotidiano, essa esperança se traduz em hábitos humildes e teimosos. Recontar as fidelidades antigas para que o coração não seja governado por boatos interiores. Orar com sinceridade, inclusive quando nada em nós parece orante. Abrigar-se na comunhão quando a fé pessoal falha e pedir emprestado o cântico do outro. Ler as Escrituras como quem acende lamparinas no escuro. Cultivar gratidão pelos rastros discretos de cuidado que pontuam o dia. Revisar expectativas e podar contratos que Deus nunca assinou. O centro do cristianismo não é um programa de recompensas. É a cruz. A injustiça mais escandalosa da história tornou-se coração da boa notícia porque ali o inocente assumiu dor e culpa para reconciliar o mundo. A ressurreição não apaga o sofrimento do presente. Retira-lhe o monopólio da palavra final.
Se Deus é injusto, lembremos que a graça atinge quem não merece. Se Deus está em silêncio, lembremos que Ele já falou definitivamente em Cristo, a Palavra encarnada. Se Deus está escondido, lembremos que Ele se dá a conhecer o bastante para ser buscado e amado. E quando o dia mau chegar, porque ele chega, não tratemos a vulnerabilidade como derrota. Fazer tudo e ficar firme é vitória que o céu reconhece. Permanecer, quando o mundo nos empurra para desistir, é adoração em alta definição. Entre criação e restauração, caminhamos por fé. A promessa não é de estrada sem vale. É de companhia que não nos abandona, de graça suficiente para hoje e de esperança que, cedo ou tarde, amanhece. Deus vê. Deus sustenta. Deus chama a permanecer. E quando a noite insiste, a igreja se ergue com lamparinas, mesas postas, salmos na boca e mãos dadas, como quem já conhece o desfecho e, por isso, não solta a mão de ninguém no meio do caminho.