Neurociência Comportamental e o Mito da Consciência Quântica: uma análise crítica entre fé, mente e ciência
Cientistas da neurociência comportamental refutam a teoria da “consciência quântica” e afirmam que mente, fé e emoções são produtos de processos neurobiológicos, não de fenômenos subatômicos.
A aproximação entre "física quântica" e mente humana nasce de uma confusão conceitual entre níveis de descrição científica. Fenômenos quânticos descrevem o comportamento probabilístico de entidades subatômicas em escalas de energia e tempo extremamente pequenas, enquanto a cognição emerge de sistemas neurais macroscópicos, compostos por bilhões de neurônios e trilhões de sinapses operando por mecanismos eletroquímicos clássicos (CRICK, 1994; KOCH, 2018). A neurociência comportamental demonstra, por meio de evidências de eletrofisiologia e neuroimagem funcional, que percepção, memória, emoção e tomada de decisão dependem de dinâmicas neurais mensuráveis, potenciais de ação, liberação de neurotransmissores, plasticidade sináptica e oscilações corticais, e não de colapsos quânticos provocados por fé, intenção ou pensamento (DAMASIO, 2010; EDELMAN, 2007). As metáforas quânticas podem ter apelo simbólico e filosófico, mas carecem de validade empírica para explicar a consciência (KOCH, 2018).
Fisicamente, a hipótese de que processos quânticos coerentes sustentem a cognição enfrenta o problema da decoerência. A coerência quântica é extremamente sensível à interação ambiental e se perde rapidamente em sistemas quentes e biológicos, como o cérebro humano, cuja temperatura média de 37 °C e constante ruído térmico inviabilizam a manutenção de estados quânticos estáveis (TEGMARK, 2000). Os tempos de decoerência estimados em estruturas neurais são da ordem de 10⁻¹³ segundos, bilhões de vezes menores que os intervalos de transmissão sináptica, o que torna impossível que fenômenos quânticos sustentem a atividade cognitiva observada (SCHLOSSHAUER, 2007). Mesmo proponentes de modelos quânticos da mente, como Penrose e Hameroff, não conseguiram comprovar empiricamente coerência quântica funcional em microtúbulos ou redes neuronais (PENROSE; HAMEROFF, 2011). A confiabilidade do processamento cerebral decorre da redundância de populações neuronais e da dinâmica de atratores em larga escala, não de estados quânticos frágeis (FRISTON, 2010).
Do ponto de vista neurobiológico, as alterações cognitivas e perceptivas que alguns autores associam à "colapsologia psicológica", isto é, à crença de que a mente molda a realidade física, são mais bem explicadas por mecanismos clássicos de aprendizado, expectativa e modulação top-down (DAMASIO, 2010; FRISTON, 2019). O chamado "efeito placebo", por exemplo, é amplamente documentado como resultado de vias neuroquímicas envolvendo liberação de dopamina e opioides endógenos em regiões como o corpo estriado e o córtex pré-frontal (COLASANTI et al., 2012; SCOTT et al., 2007). Esses efeitos não requerem invocação de colapsos de onda, mas explicam de modo biológico como crenças e emoções modulam respostas fisiológicas mensuráveis.
Experiências religiosas, meditativas e de transcendência espiritual também têm sido amplamente estudadas sem qualquer necessidade de recorrer à mecânica quântica. Pesquisas em neuroimagem demonstram que a oração contemplativa e a meditação ativam circuitos específicos, incluindo o córtex cingulado anterior, a ínsula e o precuneus, correlacionando-se a estados de bem-estar e integração (NEWBERG; D’AQUILI, 2001; NEWBERG, 2010). Tais achados reforçam que a espiritualidade é um fenômeno cerebral legítimo e mensurável, pertencente à dimensão afetiva e simbólica do ser humano, mas que não requer explicações subatômicas (AZARI et al., 2001). A consciência e a fé operam em níveis psicológicos e socioculturais, não em escalas físicas que demandem equações de Schrödinger.
A tentativa de relacionar a indeterminação quântica com a liberdade psicológica ou com a causalidade da fé é epistemologicamente incorreta. A incerteza de Heisenberg não implica que crenças determinem eventos físicos, nem que a consciência possa alterar a realidade material por simples ato de observação (HEISENBERG, 1958). A agência e a intencionalidade são fenômenos emergentes de sistemas de controle hierárquico no cérebro, dependentes de redes cortico-subcorticais e processos de aprendizado baseados em reforço (FRISTON, 2010; DAYAN; DAW, 2008). Assim, o comportamento humano é produto de dinâmicas neurobiológicas observáveis, e não de indeterminações subatômicas.
A neurociência contemporânea reconhece que crenças e emoções influenciam o comportamento, a saúde e a tomada de decisão, mas essas influências ocorrem por vias neurais e hormonais identificáveis, não por campos quânticos ou "energias sutis" (DAMASIO, 2018; PESSOA, 2017). O que se chama metaforicamente de "energia espiritual" pode ser traduzido em termos científicos como estados de coerência fisiológica, regulação autonômica e integração entre redes de emoção e cognição. O cérebro humano é um sistema biológico altamente plástico e adaptativo, cuja complexidade é explicada por princípios de auto-organização e previsão de erro, não por emaranhamento quântico (FRISTON, 2019).
É preciso reconhecer, entretanto, que fenômenos quânticos de fato existem em alguns processos biológicos, como na fotossíntese, no olfato e na orientação magnética de aves, mas em estruturas adaptadas a preservar coerência sob condições muito específicas (LAMBERG et al., 2013; ENGEL et al., 2007). Esses exemplos não validam a aplicação da física quântica à cognição, pois os níveis de organização e as escalas temporais são radicalmente diferentes. Até o momento, nenhum estudo revisado por pares demonstrou coerência quântica funcional em processos cognitivos humanos. Assim, a hipótese quântica da mente permanece especulativa e sem sustentação empírica (TEGMARK, 2000; SCHLOSSHAUER, 2007).
A neurociência comportamental, por outro lado, oferece explicações amplamente comprovadas para mudanças psicológicas e terapêuticas, baseadas em mecanismos neurofisiológicos. Terapias cognitivas, comportamentais e baseadas em mindfulness produzem alterações comprovadas na conectividade funcional e na espessura cortical (HÖLZEL et al., 2011; GOTLIB; JOORMANN, 2010). Fármacos psicotrópicos modulam neurotransmissores específicos, e técnicas como estimulação magnética transcraniana (TMS) e estimulação transcraniana por corrente contínua (tDCS) demonstram causalidade direta entre circuitos neurais e estados mentais (GEORGE; POST, 2011). Tais evidências sustentam que transformação psicológica é resultado de neuroplasticidade, não de fenômenos físicos quânticos.
Portanto, é essencial distinguir metáfora de mecanismo. A linguagem quântica pode inspirar reflexões filosóficas sobre incerteza e interconexão, mas a explicação científica da consciência e da fé reside em redes neurais, não em partículas subatômicas. Misturar física teórica com espiritualidade desvirtua ambas as áreas: a fé perde sua dimensão simbólica e a ciência, seu rigor empírico (CRICK, 1994; DAMASIO, 2010). A postura intelectual responsável é reconhecer os limites e as contribuições específicas de cada campo, a física descreve a matéria, e a neurociência explica a mente. Confundi-las não é integrar saberes, é dissolver fronteiras metodológicas que sustentam o conhecimento.
Referências
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