Violência Doméstica e a Efetividade Jurídica da Proteção à Mulher no Brasil

A proteção da mulher contra a violência doméstica exige integração normativa, políticas públicas efetivas e atuação articulada da rede de enfrentamento para romper o ciclo que pode culminar no feminicídio.

Violência Doméstica e a Efetividade Jurídica da Proteção à Mulher no Brasil

A violência doméstica e familiar contra a mulher configura um dos mais graves problemas estruturais da sociedade contemporânea, com repercussões jurídicas, sociais e de saúde pública. Sua dinâmica é explicada pela doutrina criminológica através do chamado ciclo ou espiral da violência, caracterizado por fases recorrentes de tensão, agressão aguda e aparente "lua de mel". Esse processo vicioso, que alterna episódios de brutalidade com promessas de mudança e reconciliação, aprisiona a vítima em uma relação de dependência emocional, psicológica e, em muitos casos, econômica, conduzindo à escalada progressiva da violência que pode culminar no feminicídio. Trata-se, portanto, de um fenômeno de difícil ruptura e que exige políticas públicas estruturadas, respostas penais efetivas e atuação articulada de toda a rede de proteção.

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 226, §8º, impõe ao Estado o dever de coibir a violência no âmbito das relações familiares, fundamento normativo que consolidou a edição da Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha). Esse diploma normativo inaugurou um sistema de proteção integral à mulher, estabelecendo medidas protetivas de urgência, prevendo a atuação de juizados especializados, estruturando mecanismos de prevenção e criando instrumentos de articulação entre órgãos da rede de atendimento. Posteriormente, a Lei nº 13.104/2015 qualificou o feminicídio como circunstância qualificadora do homicídio, reforçando o caráter hediondo desse crime, enquanto a Lei nº 13.827/2019 atribuiu à autoridade policial e, em casos específicos, ao policial militar em serviço, a possibilidade de determinar o afastamento imediato do agressor do lar, especialmente em municípios sem sede de comarca. Essas alterações normativas têm como base o princípio da proteção integral e da máxima efetividade dos direitos fundamentais.

No âmbito da segurança pública, destaca-se a criação e a institucionalização da Patrulha ou Rádio Patrulha de Proteção à Mulher, concebida como resposta especializada à violência doméstica. Essa modalidade de policiamento adota protocolos específicos, com equipes treinadas e capacitadas, geralmente compostas por policial masculino e policial feminina, a fim de assegurar maior acolhimento à vítima e promover a quebra do ciclo da violência. Sua atuação vai além da resposta emergencial via 190, estruturando-se em visitas periódicas tanto à vítima quanto ao agressor, em ações educativas sobre a Lei Maria da Penha, em encaminhamentos a órgãos da rede de enfrentamento e em monitoramento do cumprimento de medidas protetivas de urgência. Trata-se de uma prática de justiça preventiva e restaurativa que conjuga repressão qualificada, dissuasão e acolhimento, promovendo integração entre Polícia Militar, Ministério Público, Judiciário, Defensoria Pública, saúde, assistência social e organizações da sociedade civil.

O fenômeno da subnotificação, identificado como "cifra oculta", é um dos maiores obstáculos ao enfrentamento da violência doméstica. Pesquisas indicam que a maioria dos feminicídios decorre de casos sem registro prévio, revelando a necessidade de campanhas permanentes de conscientização, estímulo à denúncia e fortalecimento de canais como o 180 e o 190. A utilização de formulários nacionais de avaliação de risco, aplicados por agentes da segurança pública e compartilhados com os demais órgãos da rede, é mecanismo indispensável para identificar situações de maior gravidade e prevenir a escalada da violência. O descumprimento das medidas protetivas de urgência enseja responsabilização penal direta, com pena de reclusão de 2 a 5 anos, conforme alterações promovidas pelo pacote legislativo de enfrentamento ao feminicídio de 2024, o que reforça o caráter coercitivo e a função pedagógica da norma penal.

A atuação repressiva, contudo, deve caminhar em paralelo com políticas de prevenção e de assistência. O eixo preventivo compreende programas educativos em escolas e comunidades, visando desconstruir estereótipos de gênero e padrões culturais que naturalizam a violência. O eixo assistencial demanda a integração de serviços especializados (delegacias da mulher, casas de acolhimento, patrulhas específicas) e não especializados (unidades básicas de saúde, hospitais, delegacias de área), articulando apoio psicológico, jurídico e socioeconômico. A autonomia financeira da vítima é fundamental, razão pela qual programas de transferência de renda, capacitação profissional e inserção no mercado de trabalho figuram como instrumentos essenciais de emancipação. Do lado dos agressores, políticas públicas de caráter reflexivo, como grupos de reeducação e programas de reabilitação, têm demonstrado resultados positivos na redução da reincidência, ainda que não substituam a responsabilização penal quando cabível.

Outro ponto relevante é a interface entre violência doméstica e fatores agravantes como consumo abusivo de álcool e drogas, transtornos psiquiátricos e acesso a armas de fogo. Esses elementos aumentam exponencialmente o risco de feminicídio, exigindo políticas públicas integradas de saúde mental, de combate ao uso abusivo de substâncias e de controle de armas. A responsabilização do agressor deve ser célere e proporcional, utilizando-se, quando necessário, de instrumentos tecnológicos como tornozeleiras eletrônicas e aplicativos de monitoramento que assegurem o cumprimento das medidas protetivas.

O enfrentamento à violência doméstica é sustentado por quatro pilares estruturantes: prevenção, repressão qualificada, assistência e garantia de direitos. A prevenção atua sobre a raiz cultural e educacional do problema; a repressão qualificada assegura que o agressor perceba a efetividade da lei; a assistência garante apoio integral à vítima; e a garantia de direitos conecta o sistema interno de proteção às normas internacionais, como a Convenção de Belém do Pará e a Declaração Universal dos Direitos Humanos. A plena efetividade desse sistema demanda integração interinstitucional, diálogo constante entre os órgãos da rede e compromisso firme do Estado em cumprir seu dever constitucional de proteção.

A mensagem jurídica e social que se extrai desse arcabouço é inequívoca: nenhuma violência contra a mulher pode ser relativizada. Cada agressão, ainda que de menor potencial ofensivo, é um risco latente de evolução para formas mais graves, culminando em feminicídio. A atuação estatal deve ser preventiva, protetiva e punitiva, garantindo que nenhuma mulher permaneça invisível ou desamparada diante do sistema de justiça. A vida, a dignidade e a integridade da mulher são bens jurídicos indisponíveis, cuja tutela constitui expressão máxima do Estado Democrático de Direito e da própria dignidade da pessoa humana.