A Engenharia de Software Está em Colapso - E a Culpa Não É da Inteligência Artificial

A engenharia de software enfrenta um colapso silencioso, onde a terceirização do raciocínio para a inteligência artificial e a negligência dos fundamentos técnicos estão gerando sistemas frágeis, inseguros e insustentáveis.

A Engenharia de Software Está em Colapso - E a Culpa Não É da Inteligência Artificial

Ao longo de mais de três décadas respirando tecnologia, acompanhando de perto revoluções, evoluções e colapsos no universo do desenvolvimento de software, percebo que chegamos a um ponto crítico na história da engenharia de software. Um colapso silencioso, porém devastador, ameaça não apenas a sustentabilidade dos sistemas que sustentam o mundo digital, mas também a própria essência da profissão de engenheiro de software. E, ao contrário do que muitos tentam acreditar, essa crise não é provocada pela ascensão da inteligência artificial. Ela é consequência direta de uma falência cultural, educacional e estrutural dentro da própria comunidade de tecnologia.

O cenário atual é o retrato de um ciclo que se repete há décadas. Na década de 1960, vivemos a primeira grande crise do software. Projetos gigantescos fracassavam de forma sistemática. Sistemas eram entregues fora do prazo, acima do orçamento e carregados de falhas críticas. O termo “crise do software” surgiu para descrever um ambiente onde a evolução do hardware não era acompanhada pela capacidade humana de desenvolver software confiável, escalável e sustentável. A partir desse caos, surgiram os pilares que moldaram a engenharia moderna: a programação estruturada, o encapsulamento, os princípios de design, a orientação a objetos e, posteriormente, movimentos como Clean Code, Domain-Driven Design e os princípios SOLID.

Esses fundamentos não foram modismos. Foram respostas diretas ao caos. Eles surgiram não para tornar o desenvolvimento mais complexo, mas justamente para domar a complexidade crescente dos sistemas que, inevitavelmente, passaram a assumir papéis críticos em empresas, governos e na sociedade como um todo. No entanto, com o passar do tempo, esses mesmos fundamentos começaram a ser deturpados, mal interpretados e, em muitos casos, utilizados de forma dogmática, descolados da realidade prática.

A obsessão por modelos arquitetônicos robustos e estruturas excessivamente sofisticadas levou o setor ao fenômeno conhecido como overengineering. De repente, problemas triviais passaram a ser tratados como se fossem desafios de engenharia aeroespacial. Projetos simples foram encapsulados em camadas e mais camadas, compondo arquiteturas que mais pareciam um labirinto do que uma solução eficiente. A simplicidade, que sempre foi a verdadeira virtude da boa engenharia, foi sufocada pela busca desenfreada por complexidade desnecessária, alimentada por uma cultura onde a senioridade passou a ser medida não pela clareza da solução, mas pela quantidade de abstrações aplicadas, muitas vezes sem qualquer critério técnico.

Se o excesso foi um dos extremos, o outro logo se apresentou. Com a chegada da transformação digital em velocidade exponencial, catalisada por movimentos como a popularização dos smartphones, a massificação da computação em nuvem, a necessidade de escalabilidade e, mais recentemente, a pandemia, o mercado foi empurrado para o extremo oposto: o underengineering. Nesse modelo, arquitetura passou a ser considerada burocracia. Documentação virou desperdício. Testes automatizados, um luxo dispensável. O único mantra que passou a guiar o desenvolvimento era simples e perigoso: se funciona, está pronto; se der problema, resolve-se depois.

Dentro desse cenário de pressão, entregas rápidas e ciclos curtos, a ascensão da inteligência artificial generativa parecia, à primeira vista, a redenção. Ferramentas como GitHub Copilot, ChatGPT, Gemini e tantas outras passaram a ocupar um espaço significativo na rotina de desenvolvimento, prometendo ganho de produtividade e agilidade. E de fato, são ferramentas poderosas, sem precedentes na história da computação. No entanto, ao invés de serem usadas como uma extensão da capacidade cognitiva dos desenvolvedores, passaram a ser utilizadas como substitutas do raciocínio, do pensamento crítico e, pior, do próprio processo de engenharia.

O que deveria ser uma ferramenta virou uma muleta. Uma geração inteira de profissionais começou a se formar sem compreender os fundamentos da computação. Não sabem estruturar uma aplicação de forma escalável. Não compreendem conceitos como concorrência, paralelismo, isolamento, coesão, acoplamento ou responsabilidade única. Muitos sequer sabem o que significa pensar arquitetura. Mas dominam a arte de pedir. Dominam os prompts. Sabem gerar código, copiar, colar e subir em produção, sem entender, sem questionar e, muitas vezes, sem sequer ler aquilo que estão colocando no ar.

É aqui que o colapso se agrava. As inteligências artificiais generativas são alimentadas por dados públicos - repositórios, fóruns, bases abertas - que, infelizmente, estão repletos de código de baixa qualidade, sem padrão, sem testes, sem aderência a boas práticas. A IA, que não tem consciência, não sabe discernir entre o bom e o ruim. Ela apenas reproduz padrões. E quando os padrões que ela aprende são medíocres, ela apenas devolve mediocridade em escala industrial.

O que vemos hoje é um ciclo de retroalimentação da mediocridade algorítmica. A IA aprende com código ruim, gera código ruim, que é usado sem revisão por profissionais despreparados, que alimentam novamente os repositórios públicos, que continuam treinando a IA. É um ciclo que compromete não apenas a qualidade do software, mas a segurança dos sistemas, a confiabilidade dos serviços digitais e, mais grave, a própria credibilidade da engenharia de software como disciplina.

E aqui reside o ponto mais crítico: a próxima grande crise do software não é mais uma hipótese. Ela é uma inevitabilidade estatística. Ela não ocorrerá por falta de ferramentas, nem por insuficiência tecnológica. Ocorrerá, sim, pela erosão do pensamento crítico, pela substituição do raciocínio humano por geração aleatória de código, pela terceirização da responsabilidade técnica e pela glorificação da ignorância operacional.

Não é a inteligência artificial que vai substituir o programador. É a preguiça. É a negligência. É a aceitação confortável da superficialidade técnica que está destruindo a essência da engenharia de software. Porque, no final do dia, a IA não entende domínio de negócio. A IA não tem empatia. A IA não sabe o que é certo ou errado em um sistema crítico. Ela não projeta soluções. Ela não toma decisões arquiteturais. Ela não responde juridicamente ou eticamente pelo impacto de um sistema que falha.

Essa responsabilidade continua - e continuará - sendo do engenheiro, do arquiteto, do desenvolvedor que entende que cada linha de código escrita carrega um impacto técnico, econômico e, muitas vezes, social. Porque código ruim não roda apenas em sites ou aplicativos. Ele roda em sistemas hospitalares, em aviões, em bancos, em infraestruturas críticas, em operações que, literalmente, podem custar vidas.

O que a história nos ensinou, e que o presente parece ignorar, é que fundamentos não envelhecem. Frameworks mudam. Linguagens evoluem. Tecnologias vêm e vão. Mas princípios como clareza, responsabilidade, coesão, simplicidade, escalabilidade e segurança são imutáveis. Eles são a essência da boa engenharia. Arquitetura não é luxo. Documentação não é burocracia. Testes não são desperdício. São ferramentas de proteção contra o próprio colapso que, mais uma vez, bate à nossa porta.

Se quisermos salvar a engenharia de software, não precisaremos de mais IA, nem de mais frameworks milagrosos. Precisaremos, sim, de mais profissionais dispostos a resgatar a responsabilidade técnica, o raciocínio, o pensamento crítico e a ética profissional que transformam o ato de programar em engenharia - e não em simples produção de linhas de código desconectadas de qualquer propósito maior.

A pergunta que fica é direta e urgente: estamos preparados para isso ou vamos, mais uma vez, fingir que não é com a gente até o próximo colapso nos atropelar?