Bolsonaro, STF e a Legislação Penal: Limites entre Planejamento, Tentativa e Crime contra o Estado Democrático

Os crimes de abolição violenta do estado democrático e golpe de estado exigem atos executórios concretos, sendo insuficientes a cogitação ou preparação, e devem respeitar os limites constitucionais e legais.

Bolsonaro, STF e a Legislação Penal: Limites entre Planejamento, Tentativa e Crime contra o Estado Democrático

A legislação penal brasileira, em harmonia com os princípios constitucionais, estabelece critérios rigorosos para a configuração de crimes contra o Estado Democrático de Direito, especialmente aqueles previstos nos artigos 359-L e 359-M do Código Penal, introduzidos pela Lei nº 14.197/2021. Esses dispositivos demandam, necessariamente, o início da execução do delito, representado pelo verbo “tentar”. Tanto a cogitação quanto a preparação do crime não são puníveis, salvo nos casos expressamente previstos em lei, como a associação criminosa (art. 288 do Código Penal) ou situações específicas de atos preparatórios de terrorismo, conforme dispõe a Lei nº 13.260/2016. Isso significa que a idealização ou planejamento, ainda que detalhados, não configuram fato típico penal, nos termos do art. 31 do Código Penal.

Ainda que o crime esteja em execução, o agente pode ser beneficiado pela desistência voluntária, prevista no art. 15 do Código Penal, que exclui a tipicidade em relação ao crime consumado, limitando sua responsabilização aos atos já praticados. A desistência deve ser uma decisão autônoma e não provocada por fatores externos, como a chegada de autoridades. Se nenhum resultado jurídico relevante ocorrer, o agente não será punido. Assim, no contexto dos crimes de abolição violenta do estado democrático e golpe de estado, o início da execução é condição indispensável para a imputação penal.

O crime de abolição violenta do estado democrático, descrito no art. 359-L do Código Penal, exige que a conduta envolva violência ou grave ameaça destinada a impedir ou restringir o funcionamento de um dos Poderes da República, como o Executivo, o Legislativo ou o Judiciário. É imprescindível que o ato tenha o potencial de afetar diretamente o exercício do poder constitucional. Por exemplo, no caso de um sequestro de um Ministro do Supremo Tribunal Federal, ainda que odioso, a conduta não configura esse crime se não houver impacto sobre o funcionamento do Poder Judiciário como um todo. Além disso, no momento dos fatos relacionados à transição de governo em 2022, Lula e Alckmin ainda não haviam tomado posse, o que elimina a possibilidade de ações contra eles configurarem o crime de abolição violenta do Estado Democrático, uma vez que tal crime exige a restrição ou impedimento de um poder efetivamente em exercício.

Já o crime de golpe de estado, tipificado no art. 359-M do Código Penal, demanda que a tentativa de deposição seja contra um governo legitimamente constituído, isto é, eleito, empossado e em exercício. Em dezembro de 2022, o governo legitimamente constituído era o de Jair Bolsonaro. Assim, qualquer tentativa de depor Lula, que ainda não havia assumido o cargo, não se enquadra nesse tipo penal, uma vez que a norma exige que o alvo esteja no exercício do poder. Tentativas contra um governo ainda não empossado podem caracterizar outros crimes, mas não o golpe de estado conforme descrito na legislação penal brasileira.

É importante destacar que a liberdade de expressão, consagrada no art. 5º, IV, da Constituição Federal, é um direito fundamental que protege a manifestação crítica aos poderes constituídos. O art. 359-U do Código Penal reforça essa garantia, ao excluir do âmbito penal as críticas, atividades jornalísticas e reivindicações sociais pacíficas. Entretanto, essa liberdade encontra limites no respeito à legalidade, não podendo envolver violência ou grave ameaça que comprometam a ordem pública ou os direitos de terceiros. Manifestações que ultrapassem esses limites podem configurar crimes, como calúnia, difamação, injúria ou ameaça, mas não necessariamente os previstos nos artigos 359-L ou 359-M.

A configuração de crimes contra o Estado Democrático de Direito requer uma análise cuidadosa, pautada pelos princípios da legalidade e da taxatividade, consagrados no art. 5º, XXXIX, da Constituição Federal. Isso significa que não há crime sem lei anterior que o defina, e que a norma penal deve ser interpretada de forma restritiva, evitando-se amplificações que permitam enquadramentos arbitrários ou politicamente motivados. No contexto das condutas mencionadas, é fundamental distinguir ações que, embora moralmente reprováveis ou administrativamente sancionáveis, não atendem aos requisitos legais para caracterização como crimes de abolição violenta do estado democrático ou golpe de estado.

Os princípios constitucionais e a legislação penal brasileira visam proteger o Estado Democrático de Direito, mas também assegurar que a aplicação do direito penal respeite os limites da proporcionalidade e da racionalidade. A perseguição penal de atos de simples cogitação ou planejamento, sem atos executórios concretos, ou a criminalização de críticas legítimas aos poderes constituídos, mesmo que incisivas, representaria uma grave violação das garantias individuais e das liberdades democráticas. A análise penal deve sempre considerar o impacto real da conduta sobre os bens jurídicos tutelados, evitando a banalização de tipos penais excepcionalmente aplicáveis e garantindo que a repressão penal não se transforme em instrumento de perseguição ideológica ou política.