Constituição e transparência em foco: o Brasil entre princípios e privilégios
Essa é análise defende autodeterminação e responsabilidade, questiona distorções no Mais Médicos e mordomias no Judiciário, e pede serenidade nas relações comerciais e no debate sobre anistia.

Em 1784, ergueu-se no Alaska, na ilha de Kodiak, a primeira colônia russa. Décadas depois, veio a célebre compra do território pelos Estados Unidos, por algo em torno de sete milhões de dólares à época. Em 14 de agosto de 1941, Franklin D. Roosevelt e Winston Churchill assinaram a Carta do Atlântico, reafirmando que não caberia à guerra redesenhar mapas sem o consentimento dos povos. A mensagem é cristalina até hoje, e se torna ainda mais atual quando se ventila a possibilidade de negociações que pretendam decidir de fora a vida de quem está dentro, como no caso da Ucrânia. O princípio da autodeterminação não é ornamento retórico, é a espinha dorsal da ordem internacional que dizemos respeitar.
Trago esse preâmbulo para olhar o Brasil com a mesma régua de legalidade, moralidade e respeito à dignidade humana. O tema que ganhou os holofotes é o corte de vistos relacionado a dois administradores ligados ao Mais Médicos. O programa, concebido para mitigar vazios assistenciais, acumulou controvérsias que não podem ser varridas para debaixo do tapete. Houve questionamentos sobre a real necessidade do desenho atual, sobre a dispensa de revalidação de diplomas e, sobretudo, sobre a natureza dos vínculos e a destinação dos pagamentos. Em valores frequentemente citados em reportagens, falou-se em cifras bilionárias, com parcela expressiva encaminhada ao governo cubano por intermédio de organismos internacionais, enquanto profissionais em campo recebiam apenas uma fração do acordado e relatavam dificuldades objetivas. Quando a política pública terceiriza, por desenho, a remuneração de trabalhadores a um ente estatal estrangeiro e cria um arranjo que os impede de dispor integralmente do fruto do próprio trabalho, a pergunta constitucional se impõe: há compatibilidade com a dignidade da pessoa humana, com a proibição de condições análogas à escravidão e com os princípios do artigo 37, que exigem moralidade, impessoalidade e publicidade na Administração? Isso não se responde com slogans, nem com paixões partidárias. Exige fatos, auditorias, transparência e correções de rota. Se confirmados desvios, que se responsabilize quem de direito. Se houver equívocos regulatórios, que se reescrevam as regras para que médico estrangeiro seja acolhido com segurança jurídica, submetido ao regramento técnico necessário, e remunerado com justiça.
O espelho da moralidade administrativa não se limita à saúde. O episódio da chamada sala VIP para ministros do Tribunal Superior do Trabalho, objeto de recomendação de suspensão, expõe uma dissonância ética em tempos de sacrifício fiscal. A Justiça do Trabalho é vocacionada à proteção social. Qual a mensagem quando se prioriza conforto pessoal financiado pelo contribuinte em detrimento da exemplaridade institucional? A liturgia do cargo pede sobriedade. Carros oficiais, mordomias laterais e a normalização de privilégios corroem a confiança. E, já que a pauta esportiva entrou em cena, a Olimpíada do Judiciário pode ser uma confraternização legítima se tiver regramento de custos, transparência e foco em saúde e integração. O que não pode é o cidadão concluir que a celeridade processual, que deveria ser a modalidade mais praticada, ficou fora da competição.
Na seara da integridade, outra notícia merece cautela e luz. Reportagem relata a compra, em 2014, de um imóvel de alto valor em Key Biscayne, pago à vista e registrado em nome de empresa no exterior, envolvendo autoridade do alto escalão do Judiciário. Nomes e números circulam, mas jornalismo responsável não condena nem absolve por insinuação. Cobra documentos, contextualiza a compatibilidade entre patrimônio declarado e rendimentos, pergunta pela origem lícita dos recursos e lembra a vigência de regras de conflito de interesses e de transparência patrimonial. Vida privada se respeita, mas no serviço público a transparência é cláusula pétrea da confiança democrática. Se tudo estiver regular, que se prove com celeridade. Se houver sombras, que se investigue sem linchamento e sem complacência.
No xadrez externo, declarações recentes elevaram o tom entre Brasil e Estados Unidos, com acusações de protecionismo de lado a lado e respostas firmes do Planalto. Política comercial não se faz com bravatas, faz-se com estratégia, previsibilidade regulatória e defesa técnica do interesse nacional. O Brasil precisa combinar firmeza com inteligência diplomática, diversificando mercados, respeitando compromissos multilaterais e usando contenciosos quando necessário, sem transformar o comércio em palanque de campanha alheia. No front doméstico, a ideia de uma anistia a Bolsonaro voltou ao debate por vozes influentes, enquanto outras lideranças pedem prudência e leitura do ambiente do Congresso. Em qualquer hipótese, anistia é instituto excepcional que supõe costura política ampla e avaliação de consequências institucionais. Não é atalho para apagar processos, nem colete à prova de lei.
Fecho como comecei, com o compromisso com a precisão, inclusive a da língua. Noticiar um acidente como choque em “pilar de sustentação” é redundância que empobrece a clareza. Assim também na República, onde certas expressões viraram pilares de sustentação de discursos, não de fatos. O nosso trabalho, meu e seu, é depurar o ruído, separar o que é princípio do que é expediente, e lembrar que, sem consentimento dos governados, não há mudança legítima de mapa, de orçamento, de prioridades ou de destino. A Constituição não é um enfeite, é um manual de operação do poder, e continua nos dizendo, com a mesma sobriedade da Carta do Atlântico, que fim não justifica meio, e que povo não é plateia, é titular de direitos.