O voto de Luiz Fux e a reafirmação do devido processo legal no Supremo
O ministro Luiz Fux demonstrou, em voto minucioso, que não se pode condenar sem provas concretas, reafirmando os princípios constitucionais de presunção de inocência e devido processo legal.
Ao acompanhar o voto do ministro Luiz Fux, torna-se evidente a profundidade jurídica e a serenidade com que cada ponto foi analisado, reafirmando princípios constitucionais que não podem ser relativizados, mesmo diante de crises políticas. O núcleo de sua manifestação recuperou a essência do Estado Democrático de Direito: ninguém pode ser condenado sem provas robustas, individualizadas e irrefutáveis. Essa postura concretiza o devido processo legal, inscrito no artigo 5º, incisos LIV e LV da Constituição Federal, e reafirma a presunção de inocência do inciso LVII do mesmo dispositivo. Ao reconhecer a ausência de elementos probatórios que vinculassem de forma direta e inequívoca determinadas condutas ao ex-presidente Jair Bolsonaro, Fux lembrou que o Supremo Tribunal Federal não pode se afastar de sua missão constitucional para se tornar um tribunal de exceção.
O voto proferido também enfatizou a competência jurisdicional. O foro por prerrogativa de função, previsto no artigo 102 da Constituição, é excepcional e não se aplica de maneira automática a ex-ocupantes de cargos públicos ou a pessoas que não detenham mandato eletivo à época dos fatos. Ao sustentar que apenas o deputado federal Ramagem deveria permanecer sob a jurisdição do STF por ainda gozar de foro especial, Fux reafirmou a coerência jurisprudencial construída pelo próprio Supremo em ações penais originárias e inquéritos, garantindo segurança jurídica e evitando nulidades processuais que comprometeriam futuras decisões e a credibilidade do sistema de justiça.
Outro ponto central do voto foi o nexo de causalidade entre discursos políticos, críticas institucionais e atos de violência. Fux recusou a tentação de criminalizar opiniões ou imputar responsabilidade objetiva a líderes por atos de terceiros. Aplicou os conceitos clássicos do Direito Penal brasileiro e reiterou o ensinamento de Nelson Hungria e Heleno Fragoso sobre a imprescindibilidade da individualização da conduta e da comprovação do elemento subjetivo do tipo penal. Citou precedentes paradigmáticos, inclusive decisões do próprio STF que absolveram líderes de movimentos sociais por ausência de prova de ordem ou participação direta nos atos ilícitos praticados por seguidores, demonstrando que o Direito não pode ser manipulado para atender clamor popular ou pressões políticas. Sem prova direta de autoria ou instigação específica não há responsabilidade penal, sob pena de se instaurar um regime de punição por presunção ou associação de ideias.
A aula proferida também abrangeu o iter criminis, distinguindo cogitação, preparação e execução. O simples planejamento, reunião ou discussão de alternativas políticas, por mais questionáveis que sejam, não se convertem em crime sem início de execução típica. Essa distinção é um dos pilares do Direito Penal moderno, consagrado no artigo 14 do Código Penal, e protege o cidadão contra arbitrariedades do Estado. Fux mostrou com clareza que críticas ao processo eleitoral, reuniões com assessores ou militares e mesmo discursos contundentes de um presidente em fim de mandato, sem prova de ordem concreta para golpe ou ruptura institucional, permanecem na esfera da liberdade de expressão e da política, não no campo da tipicidade penal. Do contrário, admitir-se-ia uma responsabilidade ilimitada por atos alheios, afrontando o princípio da pessoalidade da pena do artigo 5º, XLV da Constituição.
Ao demolir uma a uma as teses acusatórias construídas com base em ilações, suposições e documentos sem autenticidade comprovada, o ministro recuperou a confiança de parte significativa da sociedade no papel contramajoritário do Supremo Tribunal Federal. A crítica implícita ao Ministério Público e à Polícia Federal, por não distinguirem atos de governo de atos de particulares, por confundirem prazos, datas e contextos, é um alerta: a persecução penal não pode ser usada como instrumento de disputa política, sob pena de corroer as bases do Estado de Direito. Ao mesmo tempo, Fux deixou claro que, havendo prova concreta, como no caso do coronel que recebeu recursos para repasse a terceiros, haverá responsabilização, sem blindagem ou favorecimento. Essa é a postura esperada de um juiz constitucional: firmeza na aplicação da lei, imparcialidade na apreciação dos fatos e coragem para enfrentar narrativas dominantes quando destoarem da Constituição.
Neste 10 de setembro, data em que se rememora a criação da Imprensa Régia e o nascimento do jornalismo brasileiro institucionalizado, é simbólico que um ministro do Supremo, em meio à pressão midiática e política, recupere a essência do devido processo e da liberdade de expressão, valores fundantes da atividade jornalística. Assim como o príncipe regente D. João VI buscou institucionalizar a informação oficial por meio da Gazeta do Rio de Janeiro, cabe hoje aos órgãos de imprensa independentes, sustentados por seus leitores e não por verbas públicas, manter viva a pluralidade e a credibilidade. Da mesma forma, cabe ao Judiciário, especialmente à sua Corte Constitucional, zelar para que a política não contamine o processo penal e para que cada cidadão, independentemente de ideologia ou posição de poder, seja julgado com base em provas concretas, segundo as garantias constitucionais. Esse é o verdadeiro sentido da democracia e do Estado de Direito que, mais uma vez, Fux nos recordou com seu voto magistral.






