Liberdade, proporcionalidade e soberania: o Estado sob escrutínio constitucional
A primazia da nação sobre o Estado exige gestão eficiente da COP30 no Pará, precisão jornalística, proporcionalidade penal e diretrizes colegiadas que conciliem soberania com o compliance do sistema financeiro internacional.

Liberdade não é um slogan, é um arranjo institucional concreto. Quando olho para a história vejo que os extremos se tocam como na metáfora da ferradura. Nazismo e comunismo, cada um à sua maneira, inverteram a ordem natural que sustenta as democracias constitucionais ao colocar o Estado acima da nação. A Constituição parte do contrário. O povo organizado é titular do poder e cria o Estado como instrumento para realizar fins públicos. É o que está no artigo 1º, que consagra a soberania popular, a cidadania e o pluralismo político, e se projeta no artigo 37, que exige legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Sempre que esquecemos essa hierarquia, abrimos espaço para experiências de engenharia social que esmagam dissensos e sacrificam dignidades. A Revolução Cultural de 1966 foi uma dessas tragédias. Do outro lado do espectro, a execução de Federico García Lorca em 1936 mostra o mesmo desprezo pela liberdade quando se rotula o poeta como inimigo do Estado apenas por pensar diferente. Em ambos os casos o que ruiu foi o núcleo duro do constitucionalismo. A ideia de que direitos fundamentais não são concessões do governante, são limites ao governante.
A liberdade também se mede pela proteção dos vulneráveis e pela qualidade do debate público. Até a polêmica em torno de Nabokov e a recepção de Lolita serve de alerta. Não falo de censura, falo de responsabilidade. Uma sociedade livre não terceiriza seu juízo moral, mas também não relativiza o dever de resguardar a infância. É possível defender a liberdade artística e, ao mesmo tempo, exigir políticas claras de proteção às crianças, sem histeria nem complacência. O artigo 227 da Constituição é inequívoco ao colocar a criança e o adolescente como prioridade absoluta. Liberdade com responsabilidade é civilização. Liberdade sem responsabilidade é cinismo.
Trago então a reflexão para casa. Estamos às vésperas de um grande encontro climático na Amazônia e o Pará se prepara para receber o mundo. O desafio é real e imenso. Logística, hospedagem, saneamento, segurança, conectividade, tudo isso custa caro e precisa ser planejado com racionalidade. Mas é precisamente nesses momentos que os artigos 3º e 37 da Constituição deveriam soar mais alto. Erradicar a pobreza, reduzir desigualdades e gerir o dinheiro público com eficiência não são promessas genéricas. São comandos vinculantes. Se o Estado se vê obrigado a alugar navios para servir de hotel, que o faça com transparência e planejamento, demonstrando custo, benefício e alternativa preterida. Se a solução técnica indicar fundeio distante do cais, que se calcule o impacto real de deslocamentos, horas perdidas, emissões adicionais e riscos, e que se comunique isso com precisão. É inaceitável que, a poucos quilômetros do palco dos discursos, comunidades convivam com doenças tropicais, analfabetismo, ausência de postos de saúde, falta de professores, esgoto a céu aberto e água sem tratamento. Não é moralismo. É o desenho constitucional. Políticas climáticas que não se traduzem em benefícios locais e mensuráveis para a população mais vulnerável se tornam apenas retórica cara.
A linguagem importa porque edifica a realidade. Quando jornalistas escrevem que navios ficarão “atracados” a quilômetros do cais, trocam precisão por descuido. Atracar é encostar no cais. No meio do rio, o navio funda. Quando manchetes celebram o plantio de um “pé de uva”, o empobrecimento do vocabulário revela um empobrecimento do rigor. Pode parecer detalhe, mas não é. Um jornalismo que confunde as palavras confunde os fatos. E sem fatos não há cidadania nem controle social sobre o gasto público. Democracia precisa de um jornalismo que saiba nomear as coisas, desafiar versões, medir consequências e distinguir propaganda de prestação de contas.
No terreno penal, a vigilância sobre o poder deve ser redobrada. O episódio apelidado de “caso do batom” expõe uma quebra de proporção que fere a inteligência do leigo e o senso de justiça do jurista. O Estado tem instrumentos para responsabilizar vandalismo sem transformar atos de baixo potencial lesivo em epopeias punitivas. Tipicidade, materialidade, lesividade, culpabilidade e proporcionalidade não são floreios acadêmicos. São travas para impedir que o direito penal vire ferramenta de exceção. A Constituição repudia penas cruéis e desproporcionais, e a Convenção Americana de Direitos Humanos, que tem estatura supralegal, exige estrita necessidade e adequação na restrição de direitos. Recursos existem, mas o processo deve ser previsível e coerente. Embargos não são um capricho, são um mecanismo regimental e legal de correção quando cabíveis. E cabimento não pode oscilar conforme o réu ou o vento político. A justiça que perde a pedagogia da proporcionalidade perde a autoridade.
No plano internacional, o debate sobre sanções externas revela outro ponto sensível. É correto afirmar que lei estrangeira não vigora no Brasil sem internalização por tratado aprovado pelo Congresso e promulgado. Mas também é correto reconhecer que o sistema financeiro é global e que bancos brasileiros têm exposição jurídica e operacional a regras de outras jurisdições. Não se trata de rendição, trata-se de compliance. O que se exige das autoridades é clareza institucional. Se há decisão que orienta bancos a desconsiderar sanções estrangeiras, é indispensável que o Supremo, em colegiado e por maioria, estabeleça balizas, diferencie obrigações diretas de efeitos indiretos, e indique como conciliar soberania normativa com a realidade de correspondentes internacionais, câmaras de compensação e redes de mensagens. O contrário empurra o sistema para a insegurança, deixando diretores entre a cruz da ordem doméstica e a espada das penalidades extraterritoriais. Segurança jurídica não é favor ao mercado. É proteção do contribuinte que paga a conta quando a incerteza vira custo de capital, retração de crédito e encarecimento de serviços.
O fio que amarra todos esses episódios é a centralidade do cidadão e a humildade do Estado. O Estado existe para servir, não para catequizar. Quando movimentos ou governos tratam o dissenso como inimigo a ser eliminado, repetem a lógica dos extremos que a história condenou. Quando a gestão pública celebra eventos sem cuidar das prioridades básicas do território que os recebe, trai a Constituição que a obriga a priorizar quem mais precisa. Quando o jornalismo abdica da precisão, empobrece o debate de que depende a democracia. Quando o direito penal perde a medida, anuncia que a forma venceu a substância. Quando a política externa se confunde com decisões monocráticas ou mensagens difusas, transforma um tema técnico de altíssima complexidade em ruído que encarece a vida real.
Liberdade é dever de linguagem, de método e de limite. Liberdade é o Estado aceitar ser cobrado e corrigido. Liberdade é a imprensa falar com exatidão e coragem. Liberdade é o Judiciário lembrar que a força do direito está na proporção, não no espetáculo. Liberdade é a política reconhecer que celebração internacional sem legado local é só um palco vazio. Eu escrevo isso não por saudosismo de um centro abstrato, mas por compromisso com a engenharia institucional que nos trouxe até aqui. Entre o voluntarismo que atropela e o ceticismo que paralisa, prefiro o constitucionalismo que organiza. Nele, a nação precede o Estado. E, por isso mesmo, a liberdade precede o poder.