Ocupação das mesas no Congresso aciona Corregedoria, reacende debate sobre obstrução e devido processo
Após a ocupação das mesas no Congresso, é preciso distinguir obstrução legítima de desordem, apurar com devido processo e isonomia, avaliar tecnicamente eventual anistia, cobrar da OAB e dos Poderes fidelidade à Constituição e rejeitar atalhos autoritários.

Os acontecimentos recentes no Congresso, com a ocupação das mesas diretoras da Câmara e do Senado, a reação das Presidências e o envio de nomes à Corregedoria, recolocam no centro do debate um tema que é jurídico antes de ser político: a fronteira entre a obstrução parlamentar legítima, assegurada pelo jogo democrático, e atos que possam configurar quebra da ordem interna ou atentado ao regular funcionamento das Casas. O ponto de partida é constitucional. A separação de poderes prevista no art. 2º convive com o princípio da legalidade e da publicidade administrativa do art. 37, enquanto a atividade parlamentar é protegida pela imunidade material de opiniões, palavras e votos estabelecida no art. 53. Ao mesmo tempo, agressões físicas, coação, dano ao patrimônio e impedimento arbitrário de funcionamento institucional não cabem sob esse manto. Por isso a apuração na Corregedoria, no Conselho de Ética e, em último caso, no Plenário, deve observar estritamente o devido processo legal, com contraditório e ampla defesa previstos no art. 5º, incisos LIV e LV, além de motivação e transparência. O que se afaste desses marcos abre espaço para nulidades e judicialização e prolonga a crise de confiança.
Há uma disputa semântica relevante. Chamar episódios de “motim” ou de “obstrução” altera a moldura jurídica e política do fato. A obstrução é instrumento legítimo de minoria em regimes democráticos, desde que exercida por meios regimentais típicos, como requerimentos, verificação de quórum e retirada de pauta. Transformar obstrução em crime político sem tipicidade definida e sem prova robusta viola o princípio da legalidade penal e o postulado da intervenção mínima. Naturalizar invasões, violência ou depredação como tática de minoria, por sua vez, desvirtua o processo decisório e fere o sentido da representação. Compete à Câmara e ao Senado dispor sobre sua organização, funcionamento e polícia interna, nos termos dos arts. 51, IV, e 52, XIII, e agir de imediato para preservar a ordem, sem prejuízo de apuração técnica posterior com base em imagens, oitivas e cotejo com as normas regimentais e constitucionais. A Constituição impõe ainda um marcador objetivo: a sessão legislativa não pode ser interrompida sem aprovação da Lei de Diretrizes Orçamentárias, conforme art. 57, § 2º, o que evidencia o risco institucional de paralisias artificiais em matérias orçamentárias que impactam políticas públicas e o erário.
O envio de nomes à Corregedoria aciona um trilho jurídico que precisa ser percorrido com técnica e isonomia. Sanções disciplinares a parlamentares somente se sustentam se obedecerem ao Regimento, forem proporcionais à gravidade dos fatos e respeitarem as garantias do art. 5º. Nas hipóteses extremas de perda de mandato, o art. 55 estabelece balizas e exige deliberação do Plenário com direito pleno de defesa. A diferença entre responsabilização e perseguição política está na prova, no rito e na igualdade de tratamento, inclusive diante de versões conflitantes sobre agressões. Se houver ilícito penal, a competência investigativa é da polícia judiciária e a promoção da ação é do Ministério Público, nos termos dos arts. 144 e 129, I, dentro do modelo acusatório. Se houver ilícito exclusivamente político-disciplinar, a resposta é interna corporis, sempre sujeita a controle judicial por vícios formais ou abuso de poder.
Paralelamente, volta ao debate a concessão de anistia. A Constituição confere ao Congresso Nacional a competência para concedê-la por lei, conforme art. 48, VIII, mas não outorga carta branca. Incidem os limites do art. 5º, XLIII, que veda graça e anistia para crimes como tortura, tráfico, terrorismo e equiparados. O tratamento sério exige delimitação do objeto, do período e das condutas a abarcar, além de motivação e análise de compatibilidade constitucional e de impactos federativos. Anistias amplas e imprecisas estimulam reincidências e corroem a noção de responsabilidade. Anistias parcimoniosas e juridicamente bem recortadas podem encerrar ciclos de excepcionalidade, desde que não afrontem direitos e garantias fundamentais de estatura pétrea.
Também entra em cena a advocacia organizada. O art. 133 reconhece o advogado como indispensável à administração da Justiça, o que, em diálogo com o Estatuto da Advocacia e da OAB, Lei 8.906 de 1994, reforça a expectativa de atuação concreta em defesa do devido processo legal, do juiz natural previsto no art. 5º, LIII, da presunção de inocência do art. 5º, LVII, e da vedação a arranjos investigativos atípicos que confundam as funções de acusar e julgar. Em qualquer poder, inclusive no Judiciário que guarda a Constituição pelo art. 102, o remédio contra excessos é o retorno às formas: competência definida, procedimento conhecido, possibilidade efetiva de defesa, decisões motivadas e controle recursal. A experiência recente já mostrou que atalhos processuais podem satisfazer impulsos punitivistas momentâneos, mas cobram seu preço na erosão de garantias que, cedo ou tarde, todos voltamos a precisar.
No pano de fundo, a política externa e as articulações entre chefes de Estado testam a coerência de arranjos como o BRICS. O art. 4º da Constituição oferece a bússola: independência nacional, prevalência dos direitos humanos, autodeterminação dos povos, defesa da paz e solução pacífica das controvérsias. Encontros bilaterais, telefonemas e acenos diplomáticos devem ser avaliados por critérios de interesse nacional, por aderência a esses princípios e pela capacidade real de produzir descompressão em conflitos que já cobram vidas e recursos.
Reafirmo, como jornalista e operador do Direito, o compromisso de exigir regras claras, igualdade de tratamento e luz sobre os fatos. Quando um Presidente de Casa levanta a Constituição, não se trata de gesto cenográfico, mas de assunção de um dever de ofício de cumprir com coragem aquilo que jurou. Quando a minoria recorre à obstrução, deve fazê-lo por meios legítimos e dentro de limites conhecidos. Quando a maioria pretende sancionar, precisa provar, ouvir, deliberar e motivar. Quando a advocacia fala em pacificação, é indispensável converter o enunciado em ação concreta de defesa das garantias. E quando o país se divide, a resposta não pode ser o atalho autoritário, mas o caminho estreito do Estado de Direito. Democracia representativa se mede por pauta, quórum e voto, porém se sustenta na fidelidade às formas. Sem formas, a política perde o rumo. Com formas, a tensão encontra canais legítimos de solução. A lição histórica é conhecida e dolorosa: sempre que relativizamos direitos em nome de causas momentâneas, abrimos espaço para perseguições que começam no outro e terminam, com o tempo, em todos nós.