Bolsonaro no STF: entre a retórica da dúvida e a gravidade das acusações institucionais
Em longo depoimento ao STF, Bolsonaro nega plano golpista e tenta descolar discurso político de ações que deslegitimaram o processo eleitoral.

O depoimento do ex-presidente Jair Bolsonaro ao Supremo Tribunal Federal, realizado em junho de 2025, marca um ponto de inflexão histórico no processo de responsabilização institucional por atos que, segundo a Procuradoria-Geral da República, atentaram contra o estado democrático de direito. Durante mais de cinco horas de interrogatório, Bolsonaro oscilou entre justificativas retóricas, negativas estratégicas e apelos emocionais, tentando reconstruir sua narrativa política diante das acusações de tentativa de golpe, incentivo à desinformação e articulação com setores militares para subverter o processo eleitoral de 2022.
Ao ser confrontado com declarações reiteradas sobre supostas fraudes nas urnas eletrônicas, reuniões com embaixadores, ministros e comandantes das Forças Armadas, e menções diretas aos ministros do STF e do TSE, Bolsonaro não negou ter proferido tais falas. Admitiu, porém, que se tratavam de "desabafos retóricos", frutos de um estilo político carregado de opiniões controversas, mas sem lastro operacional. A estratégia do ex-presidente foi clara: dissociar conteúdo e consequência. Reiterou que, embora tenha manifestado dúvidas e críticas ao sistema eleitoral, jamais teve a intenção, ou teria ordenado ações, que representassem ruptura institucional ou desrespeito à Constituição.
A reunião com embaixadores, em julho de 2022, foi um dos momentos mais destacados. Bolsonaro alegou que se limitou a apresentar fatos derivados do Inquérito 1361 da Polícia Federal, o qual, segundo ele, indicaria vulnerabilidades nos sistemas do TSE. Ignorando o fato de que o inquérito não tinha qualquer relação com a segurança do sistema de votação, o então presidente transformou esse documento em ferramenta política, em um cenário diplomático altamente simbólico e constrangedor para o país. Diante dos representantes estrangeiros, afirmou que o sistema era "inauditável", que havia manipulação de resultados e que ministros estariam "direcionando" a eleição. Dizia-se, naquela ocasião, envergonhado por ter que relatar tamanhas suspeitas, embora, paradoxalmente, tenha sido o principal agente a propagá-las.
A reunião ministerial de 5 de julho de 2022 foi outro ponto crítico. Bolsonaro, ao lado dos generais Augusto Heleno, Paulo Sérgio Nogueira, Braga Netto e Anderson Torres, reforçou a narrativa de que haveria fraude nas eleições, usou metáforas bélicas e referiu-se aos ministros do TSE como atores comprometidos com o "lado de lá". Reproduzido em vídeo, o encontro expôs a construção de uma retórica sistemática de deslegitimação da Justiça Eleitoral. Questionado sobre esse conteúdo, o ex-presidente classificou as falas como "palavras fortes", mas desprovidas de consequência prática. Disse que estava desabafando e que jamais cogitou qualquer ato fora das quatro linhas da Constituição.
Sobre a minuta de decreto de estado de sítio e possível intervenção no TSE, que teria sido apresentada por seu assessor especial Felipe Martins, Bolsonaro afirmou que apenas a visualizou brevemente, em um telão. Negou ter discutido sua implementação, tampouco ter editado ou assinado qualquer versão. Ainda assim, admitiu que a reunião do dia 7 de dezembro de 2022, com a presença dos comandantes militares, tratou da conjuntura eleitoral e das opções "constitucionais" que poderiam ser consideradas diante da frustração de recursos negados pelo TSE. Quando confrontado com o relato de Mauro Cid, que afirmou que o então presidente “enxugou” o documento, Bolsonaro afirmou não ter memória de ter lido, assinado ou orientado qualquer medida fora da legalidade.
O relacionamento com as Forças Armadas foi descrito como institucional e respeitoso. Bolsonaro afirmou que pediu ao então ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira, que as conclusões da Comissão de Transparência Eleitoral fossem técnicas e imparciais. No entanto, não negou que, após o TSE aplicar uma multa milionária ao PL, a cúpula do governo considerou encerrar qualquer contestação judicial para evitar retaliações. A leitura é clara: sentindo-se isolado institucionalmente, o grupo político buscou respaldo nas Forças Armadas como última instância simbólica, embora, segundo o ex-presidente, não tenha havido qualquer ordem de ação prática.
Questionado sobre as manifestações em frente aos quartéis, Bolsonaro negou qualquer envolvimento ou incentivo. Afirmou que nunca visitou acampamentos, e que o movimento "surpreendeu pela espontaneidade". Repetiu que sua atuação sempre foi dentro dos marcos da legalidade, e que jamais incitou atos violentos, como os de 8 de janeiro de 2023. Alegou ainda que a condução do novo governo diante dos protestos foi omissa, e que, se tivesse havido ação imediata, os eventos teriam sido contidos.
Durante o interrogatório, Bolsonaro também foi questionado sobre a reunião com o hacker Delgatti e a deputada Carla Zambelli, a quem reconheceu ter recebido por cortesia, mas afirmou não ter acreditado nas promessas do hacker, encaminhando-o à Comissão do Ministério da Defesa, sem envolvimento posterior. Negou ter estimulado qualquer ação contra o TSE ou planejado interceptações.
Nas falas finais, Bolsonaro construiu um apelo à sua trajetória pessoal e política. Disse que nunca teve obsessão pelo poder, que governou com limitações orçamentárias e sob intensa perseguição da imprensa. Relembrou feitos de seu governo e afirmou que hoje vive de doações via Pix. Criticou o sistema político, disse ter sofrido pressões para montar esquemas de proteção financeira pós-mandato e reafirmou que sua motivação sempre foi servir ao Brasil. Ressaltou que não se considera responsável por qualquer tentativa de golpe e que jamais teve envolvimento direto com os atos que culminaram na invasão dos prédios dos Três Poderes.
A narrativa apresentada por Bolsonaro busca transformar eventos objetivos, vídeos, reuniões, declarações públicas e articulações documentadas, em episódios de expressão pessoal e informalidade política. A tensão entre o peso institucional do cargo que ocupava e a tentativa de tratar suas falas como "opiniões pessoais" está no cerne do julgamento. Para a Procuradoria-Geral da República, há uma linha de continuidade entre a retórica sistemática e a mobilização concreta para subverter o resultado das eleições. Para o réu, há apenas opiniões, dúvidas e um desejo legítimo de aperfeiçoar o sistema. O STF, agora, terá o desafio de julgar não apenas palavras, mas a capacidade de influenciar e operar mecanismos de poder. Afinal, quando um presidente da República duvida das urnas e convoca comandantes militares a discutir o assunto, está apenas exercendo sua liberdade de expressão, ou inaugurando um processo silencioso de ruptura?