Do palanque à toga, o país busca seu norte constitucional
Após o Dia do Economista, entre denúncias nas redes, pressão sobre o Judiciário e retórica eleitoral, o país precisa proteger crianças sem censura, exigir responsabilidade fiscal e preservar liberdades.

Nesta quinta-feira, 14 de agosto, lembrando que ontem foi o Dia do Economista, retomo uma constatação que atravessa décadas e segue atual nas encruzilhadas brasileiras. Pedro Malan disse certa vez que, no Brasil, até o passado é imprevisível. É uma ironia que serve de medida para os tempos em que a economia descreve o que passou e a política se agita para definir o que virá. Como explicar um dólar mais baixo em meio a tantos sinais adversos? O mercado não é oráculo e a política não é ciência exata. Entre a aritmética fiscal e a temperatura das ruas, seguimos em balanço instável.
As efemérides de 13 de agosto ajudam a calibrar perspectiva. Em 1822, Leopoldina assumiu a regência e, com o conselho de José Bonifácio, escreveu a Pedro para que antecipasse a independência antes que oportunistas tomassem o trono. História é decisão no tempo certo. Em 1846, tropas americanas entraram sem resistência em Los Angeles, marco de uma Califórnia que, por décadas, simbolizou encontro e expansão. Em 1923, inaugurou-se o Copacabana Palace, ícone social e cultural que projetou o Brasil para o mundo. Em 1932, na Revolução Constitucionalista, a aviação paulista realizou o primeiro bombardeio noturno da América Latina, lembrando que a defesa da Constituição também é feita de excessos que a própria Constituição precisa depois emendar. Em 1946 morreu H. G. Wells, autor que imaginou Morlocks dominando Eloi domesticados, uma fábula sobre a passividade que transforma conforto em submissão. Em 1961 ergueu-se o Muro de Berlim, para impedir que cidadãos fugissem do autoritarismo. Quem foge de regimes fechados enfrenta mar, arame e medo. É lição que conversa com a nossa época, quando brasileiros voltam a emigrar por motivos econômicos e políticos, e vizinhos latino-americanos seguem cruzando fronteiras em busca de liberdade e oportunidades.
Com esse pano de fundo, o debate público de hoje tensiona princípios constitucionais que não admitem atalhos. A denúncia de que algoritmos de plataformas podem facilitar a chegada de conteúdos que erotizam crianças é grave, exige apuração técnica e responsabilização rigorosa de indivíduos e empresas. Proteção integral da infância é mandamento jurídico e moral. Mas a defesa das crianças não pode ser instrumentalizada como cavalo de Troia para legitimar censura ampla ao dissenso e à crítica política. Liberdade de expressão é cláusula central que convive com responsabilização posterior por abusos, jamais com silenciamento prévio. O caminho constitucional combina regulação transparente, due process, tipicidade e proporcionalidade. Nem vale relativizar denúncias antigas, nem vale usar a gravidade das novas para abrir a porteira a soluções autoritárias.
No terreno estritamente político, a fala de Tarcísio de Freitas em evento bancário, ladeado por governadores como Ratinho Júnior e Ronaldo Caiado, foi calculada para marcar posição. Ao afirmar que o Brasil não aguenta mais gastos, impostos, corrupção, PT e Lula, o governador acenou a um eleitorado que entende o equilíbrio fiscal como pré-condição de crescimento. Não é trivial ouvir esse tom em ambiente empresarial, onde custo de capital, crédito e previsibilidade importam. A leitura imediata é que a oposição busca unificar discurso e palanque com mensagens diretas, testando limites do debate e observando a ressonância que teve na Avenida Paulista dias atrás. Na moldura constitucional, críticas duras a governos são legítimas, movimentos de impeachment são institucionais quando ancorados em fatos e ritos, e retórica de campanha não substitui prova jurídica. Separar a retórica da evidência é o que protege a democracia de improvisos.
Outro ponto sensível é o desgaste institucional no Judiciário. O áudio atribuído ao juiz auxiliar Airton Vieira, em que relata exaustão física, psíquica e emocional, humaniza um sistema sobrecarregado e exposto à arena digital. Quando decisões judiciais cruzam fronteiras da crítica e passam a ser monitoradas por cliques e linchamentos virtuais, aumentam pressões e riscos de ruído entre legalidade e opinião. Não ajuda o histórico de ordens pouco ancoradas na técnica, nem a expressão infeliz de que se use criatividade para punir o que é jornalismo. A Constituição exige motivação, impessoalidade e estrito respeito à liberdade de imprensa. A crítica contundente cabe, o arbítrio não.
No tabuleiro externo, a entrevista de Eduardo Bolsonaro ao Financial Times, mencionando a possibilidade de novas medidas com base em legislações como a Magnitsky Act contra ministros do Supremo e familiares, projeta tensão para o plano diplomático. O tema toca soberania, reciprocidade e prudência. Punições extraterritoriais costumam gerar retaliações e, quando envolvem Poderes de Estado, corroem pontes de cooperação. A crítica é parte do jogo democrático, mas sanções estrangeiras sobre magistrados brasileiros embaralham competências e criam precedentes perigosos. O lugar para questionar ministros é o devido processo legal, com correições, impedimentos, recursos e, em última hipótese, o Senado no rito constitucional. Política externa não deve ser atalho de jurisdição.
A sucessão no Supremo entra nesse mosaico. A eleição simbólica dos próximos presidente e vice, com posse prevista para 29 de setembro, já aciona apostas e ansiedades. Especula-se sobre cansaço, saídas antecipadas e fantasmas que lembram Joaquim Barbosa. É compreensível que haja cansaço em tempos de hiperexposição, mas tribunal não é arquibancada. A liturgia do cargo pede previsibilidade e reserva. O que importa é que a alternância de presidência no STF mantenha a integridade das garantias fundamentais e do pacto federativo.
No campo penal transnacional, o caso Carla Zambelli reacende discussões sobre saúde, custódia, extradição e garantias. Perícia médica, audiência de custódia e cooperação entre jurisdições devem seguir critérios técnicos, sem espetáculo. A Constituição assegura presunção de inocência e devido processo, inclusive quando o palco é fora do país. Justiça é indeclinável, vingança não é política pública.
No meio de tudo, volta a pergunta do início. Como organizar racionalidade econômica quando a política muda os pesos de um dia para o outro? O Dia do Economista nos lembra que responsabilidade fiscal não é capricho de planilha, é justiça entre gerações. Gastar sem base e tributar por impulso encarece o país e empobrece os que menos têm. E aqui retorno à imagem de Wells. Sociedades que terceirizam sua vigilância democrática aos tutores do momento correm o risco de acordar sob domínios subterrâneos. A Constituição é manual de resistência e de governo. Ela protege crianças sem censurar opiniões, pune criminosos sem romantizar autoritarismos, dá voz a quem protesta sem calar instituições, preserva a alternância sem demonizar adversários. O passado pode ser imprevisível, mas o norte não é. Quando lembramos Leopoldina, a mensagem é de urgência responsável. Decidir no tempo certo, com base em princípios, para que ninguém tome o trono do cidadão.